domingo, 23 de março de 2008

JOHNNY CASH - 1932-2003


Afinal os “monstros” também morrem.
Johnny Cash, uma das maiores figuras da música americana acabou por desaparecer no alvor do novo século. Como se o peso de uma nova era fosse demais para os seus ossos corroídos. De fato, Cash, nascido em 1932, era uma figura carismática que para além das canções representou o espírito de um certo tipo de rebeldia humanista muito própria do Homem do Novo Mundo do século passado.
Num misto de inocência e desprezo inconformista pelas convenções, Cash foi uma figura atenta aos que o rodearam. Lutou contra a guerra do Vietnan, tocou em inúmeras prisões e vestia-se de preto pelos “deserdados e por aqueles que eram vítimas do seu tempo”. Generoso, era também uma figura contraditória, não escondendo a devoção a Deus ou à sua esposa, June Carter Cash, ao mesmo tempo que não escamoteava as suas falhas, fossem as suas passagens pela cadeia ou os seus encontros com as drogas. No fundo, Cash representou a maldição do Homem do século XX, em busca de redenção entre a simplicidade das suas origens rurais e a adaptação a uma sociedade urbana e industrial que não se compadece com as suas falhas.

Apesar de uma carreira que percorre mais de meio século e que produziu mais de 70 álbuns -dos quais se terão vendido a inacreditável quantia de cerca de 50 milhões de exemplares –, Cash poderia facilmente ter caído no “esquecimento” votado aos artistas de uma tipologia musical específica, neste caso a country music, género que no fundo sempre o acompanhou. No entanto, a fase final da sua carreira, em colaboração com o “guru”-produtor, Rick Rubin, acabou por garantir-lhe uma vitalidade indiscutível que não só lhe encerrou a vida criativa da melhor forma, como o recuperou para as novas gerações garantido assim uma nova luz sobre todo o seu legado musical e sobre a sua própria figura.

Rubin, conhecido por ter sido um dos fundadores da editora Def Jam, pelas produções de Slayer, Danzig ou por ter levado os Red Hot Chili Peppers ao topo das suas potencialidades com “Bloodsugarsexmagick” e “Californication” iniciou uma colaboração com um Cash já doente em meados da década de 90, dando início à série “American Recordings”, que procurou captar esta lenda então ainda viva num ambiente mais intimista.

Orientando as gravações, Rubin ajudou a selecionar os temas originais ao mesmo tempo que foi introduzindo canções de autores afastados do mundo da country como os Depeche Mode, Nine Inch Nails, U2 ou Soundgarden, adaptando-as com Cash ao seu estilo muito próprio. Consegue assim de uma assentada captar interpretações muito especiais, maioritariamente gravadas em casa de um ou outro, e aproximar Cash a um universo mais jovem, garantindo-lhe uma aura de modernidade clássica e conseguindo o que poucos intérpretes no seu crepúsculo sonham: um passaporte para múltiplas gerações e uma chama de criatividade até ao fim.

Mesmo com um Johnny Cash debilitado pela doença – diabetes, asma e um problema neurológico que lhe provocava internamentos constantes – e cujo estado é bem perceptível nas últimas gravações, a verdade é que nesta quase década de trabalho conjunto foi possível produzir cinco ótimos álbuns, sendo o quinto póstumo. Tal foi a força criativa e a sua vontade de continuar que, após o desaparecimento da sua companheira e musa, June Carter Cash, em Maio de 2003, se pensou que ele pararia de trabalhar, mas na verdade continuou a gravar até ao fim aquele que viria a ser o “American Recordings V”.

Cash que vem de uma família de cultivadores de algodão do Arkansas, partilhou a pobreza com mais seis irmãos, iniciando carreira na Sun Records, de Memphis, ao lado de Elvis Presley ou Jerry Lee Lewis. Em 1958 abandonou a Sun e assinou pela Columbia Records, casa que editou a maior parte da sua discografia e o acompanharia até quase final dos anos oitenta. Para a tetralogia com Rick Rubin assinou pela American do próprio Rubin, que negociaria contratos com multinacionais para a distribuição, caso a caso. A poderosa e bem colocada voz de barítono de Cash proporcionou-lhe ser agraciado com o Rock’n’Roll Hall Of Fame, Country Music Hall Of Fame e Songwriters Hall Of Fame, para além de 11 prémios Grammy e mais de 130 músicas nos tops. Inspirado pela sua mãe, que cantava para a família após o dia de trabalho, e pela música de Hank Williams, foi o primeiro a cantar músicas de Bob Dylan e Kris Kristoferson, teve os seus próprios programas de televisão e foi uma influência determinante para autores como Nick Cave ou Will Oldham com quem chegaria a gravar recentemente. Aliás Cave, num memorial escrito para o The Guardian, afirma “ter perdido a inocência com Johnny Cash” e que, com os seus programas televisivos, “viu como a música podia ser uma coisa terrível, bela e terrível”.

Discografia Seleccionada:
Johnny Cash With His Hot & Blue Guitar (1957, Sun Records)É o primeiro álbum de Cash, editado após uma série de singles de sucesso nas tabelas de country music. Por esta altura, Cash e os Tennessee Two (Luther Perkins, que o acompanharia na guitarra até 1968, e Marshall Grant, no baixo) já tinham rodado abundantemente estas canções em palco e na TV. São desta altura hits que o acompanhariam para o resto da vida como “I Walk The Line”, “Folsom Prisom Blues”, “Wreck Of The Old ‘97” ou “I’m So Doggone Lonesome” e aquela típica sonoridade meio acústica meio eléctrica entre o country e o rockabilly que caracteriza o som dos discos da Sun e que faria parte da sua própria sonoridade daí para a frente.

Sings The Ballads Of True The West (1965, Columbia)A provar que o “álbum conceitual” não é uma invenção dos anos 70, Cash edita em meados da década anterior uma ideia que já vinha dos tempos da Sun Records. Um álbum que encerra vinte canções inspiradas nas ambiências do velho Oeste. Entre originais e tradicionais recuperados para a sua voz fica desde logo a ideia que Cash, para além de intérprete e compositor, é um ótimo contador de histórias e um inteligente elaborador de ambiências.

Ao Vivo:At Folsom Prison (1968, Columbia)Para Johnny Cash uma audiência de prisioneiros era a melhor que se podia ter. Daí que, a juntar às suas visões político-sociais, não admire que tenha tocado tantas vezes em prisões. Em 68, com a guerra do Vietnã em pleno gás e o país em ebulição libertária, vai com a sua banda e a sua mulher à prisão de Folsom interpretar canções sobre cocaína, assassínio, maldição, execução e arrependimento. Com uma certa insolência e a ironia própria de quem não está para lamechices. A atitude cai que nem ginjas no goto da audiência que participa entusiasticamente no espectáculo. O álbum daqui resultante é brilhante, em simultâneo tenso e descontraído, e acaba por se tornar num enorme sucesso para Cash.

At San Quentin (1969, Columbia)Tão grande foi o sucesso de “At Folsom Prison” que no ano seguinte editaria “At San Quentin”, resultante de um espectáculo gravado para a televisão nessa outra sinistra prisão americana. O disco daqui resultante não é tão brilhante quanto o anterior, mas completa-o bem, visto que inclui algumas das melhores canções do repertório de Cash –“Wanted Man”, “Wreck Of The Old ‘97”, “I Walk The Line” ou a “A Boy Named Sue” – e uma “San Quentin” acabada de compôr e cheia de raiva que leva a audiência ao rubro.

Compilações:
Tendo as canções de Johnny Cash oscilado quase sempre entre os vértices do triângulo Amor-Devoção-Maldição, parece natural que uma retrospectiva mais completa do seu legado seja dividida numa trilogia como esta editada na transição do século e incluindo já gravações para a American.
Love (2000, American/Columbia)“I walk The Line” e “Ring Of Fire”, dois dos seus primeiros grandes êxitos, não iriam faltar numa compilação de canções de amor de Johnny Cash. Mas a maior parte dos títulos aqui incluídos referem-se às décadas de 60 e 70. A propósito Cash relembra nas suas notas que “nunca houve um amor mais profundo que o seu pela esposa”, June Carter Cash. Aproveita ainda para protestar que as canções de amor acabaram por se tornar numa espécie “de sandwiches com palavras giras que rimam”.

God (2000, American/Columbia)Uma “mistura complexa de gospels, espirituais e canções de louvor”, como o próprio autor as descreve, esta é uma compilação onde se revela o lado místico e o desejo de redenção de Cash. Com títulos gravados entre 1959 e 1994, alguns deles de inspiração direta na própria Bíblia, é um álbum sobre partilha, devoção, esperança e sabedoria. Segundo Cash, “Deus gosta de um acento sulista, tolera a country music e um bocadinho de guitarra”, daí que estas canções que parecem arrancadas a uma América tradicional e inocente soem bastante naturais.

Murder (2000, American/Columbia)Confirmando que as melhores melodias pertencem ao Diabo, a compilação “Murder”, é a melhor desta trilogia, incluindo clássicos como “Folsom Prison Blues”, “Cocaine Blues”, “The Long Black Veil” ou “Don’t Take Your Guns To Town”. São as canções preferidas de Cash sobre “ladrões, mentirosos e assassinos”. Como que a redimir-se desta sua preferência não deixa de avisar: “estas canções são apenas para ouvir e cantar, não para serem postas em prática”.

American Recordings:
I-American Recordings (1994, American)O primeiro produto da colaboração de Cash com Rubin é um álbum essencialmente acústico onde se recuperam canções de Leonard Cohen (“Bird On A Wire”), Nick Lowe (“The Beast In Me”), Glenn Danzig (“Thirteen”) ou Tom Waits (“Down There By The Train”). Gravado essencialmente na “sala de estar de Rick e na cabana de Johnny Cash” é um álbum que reapresenta Cash a novas e velhas gerações através da simplicidade dos unpluggeds que estavam em alta a meados da década passada. “American Recordings” começa com “Delia’s Gone”, uma canção sobre um assassinato que evoca de imediato o habitual universo de maldição de Cash.

II-Unchained (1996, American/BMG)No álbum seguinte passa-se do acústico para o formato de banda completa com um colectivo de músicos onde pontuam Tom Petty e os Heartbreakers e onde se conta ainda as participações especiais de Flea (dos Red Hot Chili Peppers) e membros dos Fleetwood Mac. Fazendo honras aos convidados canta-se “Southern Accent”, de Petty, mas também “Rowboat”, de Beck, “Spiritual”, dos Spain e “Rusty Cage”, dos Soundgarden. É um disco assumidamente mais rock e aberto e até com uma ligeira inflexão para a ironia na parte final em “I Never Picked Cotton” ou “I’ve Been Everywhere”.

III-American III-Solitary Man (2000, American/Columbia)Quatro anos depois, em “Solitary Man”, é o regresso a um registo em toada mais folk, e que apesar do título acontece na companhia de outros músicos onde pontuam a sua esposa, Sheryl Crow, Tom Petty, outra lenda da country – Merle Haggard-, e o “alternativo” Will Oldham. É mais um álbum de grandes canções com interpretações inesquecíveis de “One”, dos U2, “Solitary Man”, de Neil Diamond, “I See A Darkness” de Oldham, “Mercy Seat”, de Nick Cave ou “I Won’t Back Down”, de novo Tom Petty. É um disco comovente com a voz já a começar a falhar e a sombra do destino a ser antecipada em temas originais como “Before My Time” ou “I’m Leaving Now”. Nas memórias que assina no libreto, Cash agradece a Rubin e ao “Senhor da Vida”.

IV-American IV: The Man Comes Around (2002/Universal)A última das “American Recordings” é a mais existencialista e épica de todas. Puxando pelos instrumentos de teclas -pianos, mellotrons e órgãos-, o álbum ganha uma toada de proximidade espiritual, quase religiosa. Quando, em “Hurt”, original dos Nine Inch Nails, Cash canta “what have I become?” com voz trémula, assina uma interpretação comovente que se inclui nas suas gravações mais inesquecíveis de sempre. Gravado com as colaborações de Fiona Apple, Don Henley, Billy Preston, John Frusciante (dos Peppers) e de Nick Cave, en persona, “The Man Comes Around” é o melhor canto do cisne que se pode pedir para Cash, com mais um conjunto de interpretações inesquecíveis onde se incluem “Personal Jesus” (dos Depeche Mode), “Bridge Over Troubled Water” ou “First Time Ever I Saw Your Face”, uma pungente declaração de amor pela posteriormente desaparecida June Carter Cash.
Jorge Dias/Jay Rocker

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